Nos tempos da CPMI que colocou um governador goiano na moenda viva da política nacional, Carlos Bueno – que tristemente a Covid levou – e eu sentávamos no Ateliê do Grão às vezes de manhã e só saíamos perto das 20h, quando o café fechava. Ouvimos muito: troquem de lugar, ficar aqui tá muito manjado, todos já sabem onde pegar vocês. Carlos ria, eu achava alguma graça e a vida seguiu com carros e elementos suspeitos nas calçadas. Tudo fazia sentido e era parte de uma História em curso.
De vez em quando, ouço o mesmo alerta: olha, esse seu lugar tá muito manjado. Há no alerta um pouco de cuidado – quero realmente crer nisso – e outro tanto de teoria da conspiração. Os amigos brincam, provocam, sabem que o café ali continua espetacular, mesmo que hoje o Ateliê seja de nova arte e safra: Sax Coffe & More. O ambiente é acolhedor e uma lembrança diária para este velho coração saudosista das redações com máquina de escrever e a presença maravilhosa de Bordoni, Anésio Júnior, Mexicano e uma vasta tiragem de jornalistas e profissionais do meio sem igual.
Citei três nomes da chamada guarda por puro cálculo estratégico. Há tantos colegas, amigos e amigas, irmãos e irmãs que me fazem falta ao lado, que nem te conto. Esta lágrima que escorre no rosto, neste exato e gostoso momento, e essa contida vontade de estourar o dique do coração, tudo faz parte de uma nostalgia transformada em querer bem estar onde posso reencontrar aqueles que me são tão caros ao sentimento e à memória, e viver novas emoções. Diacho. Como são bons para a alma os momentos inesquecíveis. Como é gostosa a viagem para dentro da gente, férias deste mundo doido de cá de fora.
Não saio do meu lugar à toa. Não arredo o pé de certa rotina senão por necessidade de vida, essas razões de família ou de trabalho que nos enviam aqui e ali no inesperado das horas. Mas vou e volto. Voltar pra Goiânia, depois de uns dias, uns meses, umas horas que sejam, é um privilégio. Mesmo quando vou a São Miguel do Passa Quatro ou Vianópolis, onde nasci e cresci, fico esperando a volta para Goiânia. Confesso que, nesse caso, o círculo é virtuoso: vivo querendo voltar para cara uma dessas cidades mais uma vez, e outra, outra, sem parar.
Mas é curioso ouvir as pessoas sobre o que ouviram dizer e passam a dizer. Sobre como se mostram envolvidas com o que julgam saber e com a voluntariedade em servir de salvação alheia. Há muita desconfiança no ar, a repetir do que estão dizendo, embora digam assim mesmo. E mas outro tipo de desconfiança ainda, a de que se não fizerem isso, não estarão agindo corretamente, portando uma desconfiança de si mesmas. Será que não desconfiam de estarem sendo usadas, e na maioria das vezes é isso, para passar adiante uma estratégia de combate político que parece tiro à distância, mas é tiro calculado com apoio no incauto da vez?
O que é preciso dizer: teorias conspiratórias de fato carregam verdades. Se não pelo que teorizam, com certeza pelo que informam à parte. Quem espalha e como espalha. Eis o fato, a priori. Um conceito antigo e muito citado ilustra bem isso: jabuti não sobe em árvore; se está lá, ou é enchente, ou mão de gente. Desconfiar é apenas parte do trabalho do jornalista. É essência da profissão e proficiência da vida. Basta isso para mudar o mundo. Mas desconfiar para apurar, se informar, buscar a verdade – ou, se a definição for muito filosófica, buscar saber, entender, compreender.
Por quê? Sem ter estudado Jornalismo, Bueno estava sempre com um “por quê?” na ponta da língua. Era o gatilho que acendia o cérebro. E isso vinha junto com o café. Bem ainda. Uma coisa natural, maior que todas as conspirações, todas as maquinações, todas as ilusões de ótica da sociedade que vê uma coisa e enxerga outra bem diferente, e que passa isso pra frente como coisa absoluta e definitiva. Não há lugar no mundo que nos proteja da maldade humana, frase bonita e bem conhecida, pois acrescento que não há lugar no mundo que nos proteja da maldade humana, ciente aí que somos humanos, demasiado humanos na concepção do pensador máximo, meu amigo, aliás.
Meu filho mais novo, Gabriel, compartilha comigo o apreço pelo café e os ambientes das cafeterias. Ele tem o espírito da contestação. Uma historinha de família ilustra bem isso e acho até que já contei (quem escreve demais, acaba se repetindo; e eu falo pouco, mas escrevo demais, eu assumo). Certa noite, ele entra no quarto de repente, assustando principalmente a mãe, que nunca dorme quatro sonos ao mesmo tempo, um pra ela e outro para cada um dos filhos. “O que foi, Gabriel”, ela pergunta, um pouco assustada. “Minha cabeça não para de pensar.” Não vai parar nunca, se puxou o pai. Eis a verdade. E só se resolve essas coisas com café e nos cafés. Fora, não há salvação. Ainda mais pra ele que é de outra oração, não é de redação.
Como vou sair de lugar onde meu filho quer morar? Não há conspiração, não há tergiversação, não há razão que me tire de onde quero estar. Ultimamente, anda mais difícil porque toda hora vejo algo que me lembra o Bueno. Dá uma saudade danada. Mas tem os outros amigos, tem a camaradagem do nosso grupo de companheiros, os ex-Ateliê, tem sempre uma novidade e um “por quê?” convalidando a presença diária onde está bom, onde estou bem e onde ficam bem todas as coisas. Evidente que as ruins também. Um espaço para conversa fiada, e sempre o melhor momento para a boa companhia da solidão com sofá nos olhos e uma broa à mão.
Deixe que as teorias cheguem para o café. Deixe que tragam as conspirações mais delirantes, mas também as informações por demais estratégicas. Deixe que o risco de morte seja real, que o fim dos tempos esteja iminente, que os risos e papos revolvam o mais fundo dos desejos pessoais, que a graça do ambiente contamine e confunda as verdades, e que no final não haja dúvida de que o caldo da cana adoça os lábios assim como o rescaldo das tramas alimenta o curso das histórias e se realimenta no vão das contendas eleitorais e das lendas e causos de ocasião na justa articulação política da vida. E vejam: escrevi cheio de negaça porque nas entrelinhas não há dúvida de que tudo passa, tudo tem sua graça.
E não me perguntem se as conspirações são cafés com ou sem açúcar. Política e conspiração mudam muito de ideia. Eu tomo café sem açúcar, mas não morro ao sabor das definições. Tudo é e não é com história. Vivo em definitivo sempre, e ponto. Por quê? Sei não. Quero saber.
*Texto publicado pela Tribuna do Planalto