A hegemonia do carro de bois

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Houve um tempo em que os únicos meios de transporte de pessoas e de riquezas eram o carro de bois, o cavalo, o burro, a carroça e as carruagens.

Sobre o carro de bois, registra a história que o primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa, quando aqui chegou trouxe na sua comitiva carpinteiros e carreiros práticos, para o desempenho do ofício nas terras que seriam descobertas e colonizadas. E no final de quatro décadas do descobrimento da Terra de Santa Cruz, o carro de bois já circulava garboso pelas ruas da recém-fundada cidade de Salvador.

Verdade que nos primeiros tempos da colonização o carro de bois era soberano. Além de manter em movimento a indústria açucareira, desde a roça ao engenho e do engenho até as cidades, mobilizava também a maior parte do transporte terrestre durante os séculos XVI e XVII, transportando materiais de construção para o interior e voltando para o litoral carregado com pau-brasil e produtos agrícolas produzidos nas lavouras interioranas.

Ainda no Brasil colonial, além dos fretes, o carro de bois conduzia famílias de uma povoação a outra. Por vezes era transformado em “carro-fúnebre”, o que levava os carreiros a lubrificarem os cocões do carro para evitar a cantoria em hora imprópria.

 Em meados do século XVIII, no entanto, com o aparecimento da tropa de burros, o carro de bois perdeu sua hegemonia. Mais leves e mais rápidos, os muares não exigiam trilhas prévias e terrenos regulares. E no final do século vieram os cavalos para puxar carros, carroças e carruagens, e o carro de bois foi proibido por lei de transitar no centro das cidades, ficando o seu uso restrito ao meio rural.

Aqui em Goiás, para citar um exemplo, no início do século passado (século XX), antes da chegada da Estrada de Ferro Goiás, cuja construção permaneceu vários anos paralisada em Roncador, Município de Pires do Rio, os produtos e bens de consumo para abastecer a província, tão necessários para a economia e especialmente para a vida no campo, eram transportados via carro de bois e no lombo de burros conduzidos por tropeiros. E a carga constituía-se principalmente de sal, arame, panela de ferro, caldeirão, querosene, tecidos e armarinhos. O sal abastecia a pecuária que, àquela altura, já se apresentava com crescimento satisfatório e promissor. O arame era utilizado na demarcação e fechamento das propriedades particulares em formação.

Até então não havia cercas separando terras de ninguém, como também quase não existiam estradas. Era um “mundão sem fim”, como se costumava dizer. Assim, durante o pouso, os bois eram apascentados através do sistema denominado pelos carreiros de “arrodeio” e “encosto”. Consistia em reunir os ruminantes nas proximidades do local do pouso, onde não houvessem pisado antes, às vezes à beira de um córrego ou uma restinga escolhida pelo faro do carreiro, onde eram pastoreados pacienciosamente até que se fartassem da pastagem e fossem deitar para o descanso e a ruminação. De sorte que, quando dormiam e descansavam, e o dia começava a raiar, os bois vinham aos poucos, induzidos ou por conta própria, de volta à presença dos donos.

Os carreiros andavam normalmente em frota de cinco, seis carros de bois. Dormiam no chão, em camas improvisadas sobre couro cru e debaixo dos carros, muitas vezes em cima do lamaçal da chuva e ao relento.

Conta-se que nas primeiras décadas do século passado, havia um local, no lado sul do município de Bonfim (Silvânia), que era um dos itinerários (não havia caminho) para transporte de mercadorias do Porto Corumbá, na jurisdição de Santa Cruz de Goiás para Vila Boa, por meio de carro de bois. Como a viagem era longa, os carreiros preferiam fazer o trajeto sempre em grupo constituído de vários carros de bois, pelo princípio da solidariedade, já que aquele meio de transporte oferecia altas dificuldades para o carreiro, como quebra de canzil, de canga, apodrecimento das correias, acidente com os próprios bois etc. Numa dessas viagens, nem todos os carros de bois puderam atravessar o “ribeirão sem nome” por causa de uma enchente de altas proporções. Apenas quatro conseguiram a travessia.

Por conta disso, esse acontecimento ficou como referência. Toda vez que alguém se referia ao fato ou àquele local, ou ainda ao ribeirão (sem nome), dizia: “É lá onde passaram quatro”. Com o uso, a expressão foi-se degenerando para “passaro quatro”, “passou quatro” e finalmente “passa quatro”, que passou a ser o nome do rio: Rio Passa Quatro, razão pela qual a povoação formada em suas adjacências, em louvor a São Miguel Arcanjo passou a ser denominada São Miguel do Passa Quatro, emancipado em 9 de janeiro de 1988, onde tive o prazer de ser o primeiro prefeito, no período de 01.01.1989/31.12.1992.

Carreiro apaixonado e cuidadoso

E o que dizer do carreiro? Em linhas gerais, todo carreiro é um apaixonado pela atividade que exerce. Gosta de bois mansos, obedientes e de uma tralha bem produzida e sistematicamente coberta de cuidado e zelo.

As cangas são confeccionadas de madeira boa, os canzis bem ajustados e os ajojos de correias bem trançadas. Cada um cambão sem trinca e bem amarrado na canga. E o chumaço do carro, colocado na medida certa, para produzir a cantiga desejada pelo carreiro. Se o carro vai devagar, a passo lento, é principalmente por que o carreiro quer ouvir e apreciar a cantiga produzida pelos cocões. Às vezes até exagera.

Foi o caso do Adão da Miúda, que era um carreiro cuidadoso, de longos anos de profissão, que costumava posicionar-se atrás do carro com a vara de ferrão firme e apoiada no chão, para dar as devidas falas com os bois. E ordenava:

“Fasta Sereno!… Vai Faceiro!…” “Ôôôa!…”

E foi numa dessas jornadas que o carro cheio de milho lhe pareceu que ia tombar ao passar por um local inclinado. E logo adiante havia um cupim que poderia ser determinante para a queda do carro, caso a roda esquerda o alcançasse. E não deu outra.

Só que, quando Adão viu a coisa feia, firmou no solo o pé da vara de ferrão e foi conversando com os bois, na esperança de que mudassem a direção e desviassem do tal cupim. Bradava:

 “Segura, Moroso!… Segura, Moroso!…”

“Vai Mansidão!… Vai Mansidão!…”

E enquanto falava, ia pendendo o corpo em sentido contrário ao da roda que fatalmente subiria no cupim.

Foi indo, foi indo, foi indo até o carro tombar para a direita, ao mesmo tempo em que o carreiro tombava para a esquerda, desabando-se na poeira da estrada. Coisa assim pra rir dias e dias seguidos.

       

Elson Oliveira
Elson Gonçalves de Oliveira foi professor de Língua Portuguesa, é advogado militante e escritor, com vários livros publicados.
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