A defesa da cadela de estimação

em

|

views

e

comentários

Caminhava em direção ao amigo advogado um homem cujo corpo se mostrava carcomido pelos anos. Rosto tomado pelas rugas impiedosas que o tempo foi formando lentamente e que aumentavam ainda mais quando ria ou fechava a cara. Cabelos já bem grisalhos: mais brancos do que pretos, que o chapéu de abas caídas e cheio de buracos não conseguia esconder. O caminhado era bem cadenciado, ritmado pelo balanço de sua composição muscular já comprometida pela velhice. Traje simples, de uma pessoa simples, moradora a vida inteira em uma cidadezinha igualmente simples.

O tal homem, seu velho conhecido desde os tempos da infância, avistou-o de longe e acenou-lhe com a mão bem erguida para que parasse. O advogado atendeu. Encostou o carro numa sombra e ficou aguardando. Depois, sentou-se com ele em um toco que servia de banco, estendido na porta da rua, e pôs-se a ouvir o que ele tinha a dizer.

– Levaro minha Chulica, seu doutor! – disse, quase chorando e falando pelo nariz, bem fanhoso.

Seu bafo de onça denunciava os seus últimos atos, os de entornação de copo, na vendinha de costume.

– E quem levou sua Chulica, você já sabe? – indagou com seriedade o amigo, por que a conversa era séria, e motivos não tinha para rir da desgraça alheia, quanto mais do sofrimento de João Caolho, seu amigo de outrora, pela perda de uma cadelinha vira-lata.

– Num há de crer que rabeou aqui na porta de casa um caminhãozinho com uma gaiola, descero dois negão desse tamanhão e dos braços dessa grossura e jogaro minha bichinha lá drento!

– E você não fez nada pra impedir?

– Num deu tempo. Eu tava lá na venda e fiquei espiando aquela estripulia: um dos home cercava, encantuava, e o outro, com um laço na mão, na primeira jogada laçou a Chulica.

– E aí, o que aconteceu depois?

– E aí que na hora que eu descobri que ele tinha laçado era a minha Chulica, ah seu doutor, aí eu virei uma fera e saí correndo feito um doido.

– Pegou o homem?

– Peguei nada. As pernas não têm mais destreza nem força pra correr, aí eu saí manquitolando, arrastando a perna canhota, que é a mais judiada. Mas não adiantou de nada. Só escutei quando o home pisou no acelerador. E lá se foi minha cachorrinha de estimação, minha companheirinha de toda hora. Só ficou a fumaça do tal caminhãozinho pra traz.

– Mas isso não há de ser nada, você arranja outra cachorrinha! – quis o amigo profissional acalentá-lo, por ver a sua aflição.

– Num serve não, seu doutor. Igual a Chulica num hai no mundo. Ela é como se fosse minha fia. Dorme lá pros pé da minha cama toda noite. É minha companhia. Agora fiquei sozinho no mundo.

João Caolho fez uma pausa, abaixou a cabeça, tirou do bolso traseiro um lenço manchado de sujeira e limpou as lágrimas dos olhos remelentos. Depois continuou:

– Fiquei pra morrer de dó da pobrezinha: ela pulava, esperneava, estacava, latia… Mas a laçada não deixava ela escapulir. Agora eu pergunto: o quê que um animalzinho desses vai fazer de mal pra alguém? Dissero que isso é coisa do prefeito, ele que mandou pegar os cachorros da cidade. Isso é povo mau, sem coração!… É gente que se num arrepender das travessuras que fez e num rezar muito na vida periga de esturricar no fogo do inferno, quando morrer.

– Também não exagera, meu amigo João!… – repeliu o interlocutor, mais em tom de acalento do que de brincadeira.

No entanto, ele parecia não ter ouvidos para as palavras repreensivas e ao mesmo tempo consoladoras do amigo. E concluiu seu discurso:

– Deixa esses políticos vim cá outra vez pedir voto e engambelar a gente pra votar neles, com aquela conversa mole, deixa! Vão sair daqui de casa que nem a Chulica saiu: escorraçados!…

Percebia-se a indignação de João Caolho. Compreensível, até. Ah! João Caolho era seu nome de guerra. Perdera o olho esquerdo quando era ainda jovem, desencoivarando roça nova. Na ânsia de abaixar para pegar um feixe de coivara no chão, que ergueria aos ombros a fim de conduzi-lo ao fogo, seu olho bateu de encontro a uma pontinha aguda de toco e lá se foi o precioso órgão da visão.

Mas isso nunca serviu de empecilho na sua vida. Enquanto pôde, isto é, enquanto Deus lhe deu forças, enfrentou com valentia o trabalho pesado da roça sem acovardar-se. Depois sua vida mudou: foi pegando idade e por fim passou a viver escorado no governo com a bendita aposentadoria de cada mês. As pingas que bebia só causavam mal à sua própria saúde. Era daqueles que quando entornavam além da conta – o que nos últimos tempos fazia constantemente – amuavam num canto e não perturbavam ninguém.

Retornando ao caso da Chulica…

O homem estava completamente furioso e desolado com o acontecido. Como o amigo viu que ele ainda tinha muita coisa para contar e para reclamar, tentou ajudá-lo, indagando sobre outros possíveis detalhes da história, a fim de deixá-lo bem à vontade para desabafar.

– Você foi atrás dos homens pra saber o destino da cachorrinha?

– Não, não fui. Aliás, eu chamei o amigo aqui foi justamente pra dar essa causa. Preciso de um advogado bão. E ocê eu sei que é o mió. Quem sabe o doutor, que é meu amigo lá das antiguidades, quer ir buscar a Chulica pra mim!… Dinheiro pra pagar os serviços de adevogado eu não tenho não, mas na hora que o doutor puser as vista na minha cachorrinha vai ver que valeu a pena salvar ela da morte.

A proposta pegou o advogado de surpresa. Ele tinha lá tempo para deixar seu escritório, seus interesses pessoais e ir atrás de cachorro, mesmo que se tratasse da Chulica de João Caolho? Logo ele que nunca se deu muito bem com esse tipo de animal! A princípio, chegou a ficar indignado, contudo, antes de dar a resposta, João Caolho antecipou e continuou com seus choramingados, tecendo elogios ao seu animalzinho estimado, fato que acabou sensibilizando o profissional e convencendo-o a abraçar a causa.

– O doutor precisa ver que ela é uma cachorrinha e tanto! Faz tudo que eu mando: se mando pular, ela pula; se mando deitar, ela deita; se mando correr, ela corre… Ela que me protege quando tou dormindo na rua.

– Você gosta muito dela, não gosta? – indagou o amigo advogado.

– É meu xodó, doutor! Em qualquer lugar que eu tou, ela tá ali perto de mim. E hai daquele que inventar de me encostar a mão! E quando tou bebendo, ela fica ali deitadinha em redor da garrafa de pinga, vigiando. Não atenta ninguém, só se mexer com ela ou com a garrafa. Aí ela rosna e vira uma onça.

Diante de seus argumentos, o advogado resolveu assumir a causa de João Caolho e de Chulica. E foi atrás do animalzinho.

Para o advogado não foi difícil convencer os bons rapazes e servidores da prefeitura a devolverem a cachorrinha ao dono, o lamentável foi pagar cinquenta “pilas” pela sua devolução. Disseram que era para pagar pelos serviços de apreensão e depósito do animal. No que ele quis contra-argumentar, o moço que o atendeu fechou a cara, engrossou a voz, e disse que era a norma da casa. Falar o quê!… O que não podia era voltar de mãos abanando, sem a cadela. O que diria ao seu amigo se isso acontecesse?

O advogado ficou no desembolso daquela quantia em dinheiro, porém foi recompensado pela alegria de João Caolho, que o agradecia incessantemente e chorava feito criança, assim que pôs os olhos na sua cachorrinha; e pela satisfação da Chulica que, ao ver o dono, corria em círculo, latia, abanava o rabinho, choramingava e lambia as rugas do rosto do dono.

Após a viuvez e o casamento dos filhos, João Caolho ficou sozinho e esquecido no mundo. Chulica era a companheira inseparável que lhe restava.

*Elson Gonçalves de Oliveira foi professor de Língua Portuguesa, é advogado militante e escritor, com vários livros publicados

Elson Oliveira
Elson Gonçalves de Oliveira foi professor de Língua Portuguesa, é advogado militante e escritor, com vários livros publicados.
Compartilhe
Tags

Mais Lidas

Renovação do Programa Universitário do Bem vai até 31 de julho

Estudantes precisam atualizar o cadastro para continuar a receber o benefício no segundo semestre de 2024 Os estudantes contemplados pelo Programa Universitário do Bem (ProBem),...

Goiânia incentiva vacinação durante férias escolares

Município oferece 20 tipos de vacinas do Programa Nacional de Imunização (PNI) em suas 68 salas de atendimento. OMS orienta que manter carteira de...

Museu de Arte de Goiânia e Museu Frei Confaloni são opções gratuitas de lazer cultural nas férias

Locais abrigam história e obras que retratam a cidade, bem como grandes nomes da arte goiana, brasileira e até internacional O Museu de Arte de...

Recentes

Relacionados