Assobio de cobra após o escurecer

em

|

views

e

comentários

Contam as más línguas que, em tempos passados, antes da televisão e da internet, uma das formas preferidas por aqueles que gostavam de “pular cerca” era aproveitar-se da ausência do parente, amigo ou compadre, para assediar a patroa (ou a comadre) que permanecia em casa, no sossego e na segurança de seu lar. A história que segue é uma delas.

Almerindo era daqueles sitiantes que saíam constantemente para os botecos da corrutela, ali perto, deixando sozinhos a mulher e os filhos pequenos até tarde da noite.

Os meninos tinham muito medo. De uns tempos em diante, começaram a ouvir assobios que vinham do fundo do quintal, após o escurecer. Outro assobio respondia, parecendo de dentro da casa.

— É de gente, mãe? – indagavam as crianças, um tanto ressabiadas.

— Né não, é de cobra – respondia a mãe. E ordenava: Todo mundo pra cama, já!… Assobio de cobra é um perigo!…

E os assobios se intensificavam. Foi indo, foi indo, até que chegou ao ponto de as crianças reclamarem diretamente para o pai, que no começo achou graça, riu dos meninos, mas com o passar do tempo percebeu que a coisa parecia séria mesmo. No entanto, havia um “porém” naquela história, que intrigava Almerindo: A cobra só assobiava quando ele não estava em casa.

— Os meninos acham que é assobio de gente – dizia o marido à mulher.

— Né não, é de cobra mesmo – defendia ela.

— Como é que você tem tanta certeza assim?

— Eu sei, quando eu era pequena, a mãe contava que cobra gosta de “assobiá” à noite.

A partir daí o marido começou a desconfiar da esposa. Mas precisava de prova. Sem prova não se pode condenar ninguém. Como já havia tratado uma pescaria, resolveu deixar para tirar a limpo aquela história depois que regressasse. Precavido, ordenou aos filhos: “Observem se a cobra vai assobiar quando eu estiver fora! Papai traz balinhas pra vocês, ouviram?”

Quando voltou da pescaria, a primeira coisa que ele quis saber foi sobre o assobio da serpente:

— E aí, o que virou da cobra? – indagou aos meninos.

— Assobiou toda noite, pai!

— Ficaram com medo?

— Demais! Mas a mãe punha a gente pra dormir na mesma hora, que era pra não ficar com medo.

— Aí tem coisa! – imaginava Almerindo.

Na semana seguinte, ele permaneceu em casa e a cobra não assobiou. Ele inventou, então, uma viagem de mentirinha, pela qual deveria pernoitar uma noite fora de casa. E foi. Não sem antes passar pelo boteco costumeiro para tomar uma e para divulgar a sua ausência naquela noite. Fazia parte do plano.

Almerindo fez que foi, mas não foi. Esperou anoitecer e voltou, para o sítio. Ficou escondido lá no fundo do quintal, de onde vinha o assobio da rastejante. Haveria de pegar a cobra no flagrante. E pegou. Era o compadre Emerenciano. O sujeito chegou devagarzinho e amarrou a mula na cerca. Olhou para um lado, para outro, e como não viu ninguém, deu um estridente assobio. No mesmo instante, a outra serpente respondeu lá dentro de casa. Emerenciano foi a pé naquela direção. Pé ante pé. Não podia dar bobeira, senão botava tudo a perder.

Almerindo achou que o compadre merecia um corretivo. E quando as coisas silenciaram no covil das cobras, e a luz foi apagada, montou na mula do compadre e foi lá para a casa da comadre, ali perto.

— Que sucedeu com Emerenciano, compadre, o senhor na mula dele?!… Algum problema sério?

E Almerindo narrou-lhe o que acabara de presenciar. A comadre chorou muito, xingou, prometeu isso e aquilo, mas depois foi-se acalmando aos poucos.

— Que vamos fazer agora, compadre? – indagou a comadre traída, já deixando escapar uma fagulha de desejo de vingança.

— Bem, chumbo trocado num dói, a comadre não acha?

— Sei não, compadre, eu não sou dessas coisas não.

— Nem eu. Mas os dois estão lá, deitados juntinhos, no bem bão. Que que a comadre acha?

Ela demorou a admitir – sempre fora dama direita –, mas acabou concordando com a proposta indecorosa do compadre Almerindo, pois acabou achando que era a melhor forma de dar o troco.

Mais tarde, depois de tudo consumado, Almerindo voltou para casa montando a mula de Emerenciano e conduzindo na garupa a comadre. Quando Emerenciano viu aquilo, quase morreu de susto e de raiva.

— Que significa isso? – reagiu.

— Compadre Emerenciano, vi sua mula ali no fundo do quintal e tirei ela de lá por causa das cobras. Quase toda noite a gente ouve assobio de cobra naquele lugar. Levei a mula pra devolver, mas o compadre não tava em casa!… Fiz bem?

Emerenciano nada respondeu. Fechou a cara e deu uma tosse esquisita, muito feia. E Almerindo continuou:

— Ah! Truxe também a comadre, que tava sozinha e morrendo de medo! Fiquemo lá só nós dois, um tempão, mas daí eu desacorçoei de esperar. Agora o compadre devolve minha muié e pode levar a mula! Chumbo trocado num dói não, né compadre! Ou dói?

Emerenciano sacou o revólver, mas sua mulher pulou na frente e contou-lhe um setenta, que ele jamais tinha ouvido. Aí o homem voltou atrás e soltou a fala: “Nestina, vamos embora pra casa!… Caminha!… Ligeiro, senão eu mato esse atrevido!”.

Elson Oliveira
Elson Gonçalves de Oliveira foi professor de Língua Portuguesa, é advogado militante e escritor, com vários livros publicados.
Compartilhe
Tags

Mais Lidas

Renovação do Programa Universitário do Bem vai até 31 de julho

Estudantes precisam atualizar o cadastro para continuar a receber o benefício no segundo semestre de 2024 Os estudantes contemplados pelo Programa Universitário do Bem (ProBem),...

Goiânia incentiva vacinação durante férias escolares

Município oferece 20 tipos de vacinas do Programa Nacional de Imunização (PNI) em suas 68 salas de atendimento. OMS orienta que manter carteira de...

Museu de Arte de Goiânia e Museu Frei Confaloni são opções gratuitas de lazer cultural nas férias

Locais abrigam história e obras que retratam a cidade, bem como grandes nomes da arte goiana, brasileira e até internacional O Museu de Arte de...

Recentes

Relacionados