Peço permissão ao leitor para contar um caso dos tempos longínquos da infância, das estripulias de menino do interior, no deleite da vida livre e solta das beiras de córrego e das corrutelas cujas ruas e praças eram povoadas por animais, pastando comodamente, misturados com os transeuntes humanos.
Cidade bem pequena, mera povoação com algumas dezenas de casas de morada. Ruas em formação, que serviam de pasto para os animais dos proprietários, pois, se não for exagero, apenas uns dois moradores possuíam automóvel. O que mais havia era cavalo, burro, bode e cachorro. Ah! Minha mãe dizia que tinha assombração também, e eu morria de medo.
Havia muitos entreveros, constantes arrelias, muito disse que me disse… Mas a vida seguia assim mesmo dentro da normalidade. De vez em quando um fato pitoresco, que chamava a atenção dos moradores e servia de galhofa e assunto para vários dias seguidos. Um deles, o caso da égua, que conto a seguir…
Nesse cenário, Zé da Rosa e Chiquito se juntaram a outros dois moleques desocupados e encapetados, para fazer o que há tempo estavam pretendendo.
Havia uma égua pedrês, arisca e boa de trote, que era bem manjada pela população. Quase toda noite os moradores acordavam com a tal exalando um sopro estranho pelas narinas, pastando um capim duro e resistente, e de vez em quando erguendo a cabeça para deixar escapar um relincho estridente e apaixonado, como se estivesse chamando um macho para o acasalamento.
Zé da Rosa foi na ponta dos pés, bem devagarzinho, conversando baixinho com a desafeta, mostrando-lhe uma espiga de milho:
— Chio!… Chio!… Chiiiiio!…
— Rem-rem!…Rem-rem!… Rem-rem-rem!… – obedecia a animália, meio desconfiada, mas permitindo a aproximação do sedutor.
Enquanto ela espichava o pescoço para alcançar a espiga que lhe era mostrada, exarando seu “rem-rem-rem” matreiro e esguio, Zé da Rosa passou-lhe de mansinho uma corda por detrás das orelhas, dominando-a de vez. Os outros moleques ficaram ali, encolhidos, prendendo a respiração para não fazer barulho, de medo da danada passarinhar. Nisso, Chiquito, lépido e muito bom naquele tipo de serviço, já tinha preparado uma lata vazia, grande, de vinte litros quando desocupada, bem barulhenta, que a amarrou com jeito e com nó cego no rabo da coitada.
E Zé da Rosa meteu a mão aberta – assim de chapa –, na cara da relinchadeira, despachando-a rua abaixo. E o trem saiu doido, desembestado. A lata beijava o cascalho, pulava para cima, tornava cair, numa desordem dos diabos. Quanto mais barulho fazia a lata, mais a égua rinchava, corria, urrava, urinava… Não tinha esse que não comprasse medo. Só se via gente assustada, correndo sem direção.
E a pedrês, num mais que perigoso ziguezague pela rua afora, caiu por cima do pescoço, numa cisterna velha que o dono não achara tempo para entupir. Nessa hora a meninada sumiu. Cada qual procurou seu rumo, com medo das consequências.
No outro dia, Seu Juca, o proprietário da égua, campeava desolado e nada encontrava. “Isso é caso de responso, Juca, vamos lá na dona Antoninha responsadeira que ela acha a nossa égua” – sugeria a injuriosa Dona Maria, sua esposa.
Não foi preciso. Logo mais o esconderijo da finada foi descoberto. Não tinha mais jeito. Não fedia ainda, mas já estava inchada e azul, à espera dos urubus. Nesse momento chegou o Paraíba, valente que nem ele só, e ofereceu ajuda a Seu Juca, a fim de encontrar os criminosos a qualquer custo, prometendo fazer isso e aquilo. E o valor da indenização a ser cobrada aumentava cada vez mais, na boca do nordestino. Seu Juca, um velho rude e humilde, nada falava, só ouvia, com a cara fechada.
Os arteiros foram descobertos sem muito trabalho. E para surpresa geral, inclusive do valente Paraíba, que prometia resolver a questão no cabo da peixeira, seu filho Zé da Rosa era o principal infrator. Diante do susto, quis ele desconversar, mas o dono da égua arrancou duma garrucha de dois canos, enferrujada, e chamou-o na regulagem, lembrando-o de tudo quanto houvera dito momentos atrás. Não teve escapatória.
— Home tem que ser home lá na Paraíba e aqui no Goiás, pois não, sô! – bradou Seu Juca, branco de raiva.
— Homem só é homem de verdade quando está com a razão do seu lado, Paraíba – interferiu a autoridade que acompanhava de perto a investigação.
— Oxente, peixe morre é pela boca! – balbuciou o valentão, reconhecendo que a razão estava mesmo com o dono da égua. – Fui ajudar o home e me estrepei – finalizou.
Diante disso, não houve outra saída a não ser a quotização entre os pais dos arteiros do valor da pesada indenização.
Ô égua cara! – diziam em gracejos as testemunhas ali presentes.
E o fato acabou sendo o assunto preferido da população durante semanas seguidas.