Ano Novo é um sentimento. É o tempo passando no coração da gente. Não temos felicidade o tempo todo. Não somos tristes sem parar. O equilíbrio é um tanto desequilibrado, tudo bem, e isso nos faz um pouco mais tristes na vida, ou um pouco mais alegres ou do tipo que não recusa um leve sorriso sequer às adversidades. Nessa margem de erro residimos sempre com o risco de correr para um lado só e perder o limite de nós mesmos.
O tempo do mundo, o tempo de todos, corre de qualquer jeito, não cria expectativas nem gera ansiedade. Se é Natal, se é Ano Novo, se é Carnaval, ele passa direto, como quem tem um destino urgente. O fim? Deus? O nada? O tempo segue sem falar com ninguém. No meu ouvido, tenho seu zunido, o vento de sua imaterialidade. Não sei o que é silêncio. Jamais tive um segundo de ausência do que quer que seja, porque há esse som de ida me deixando para trás.
Meu coração precisa de um Ano Novo. Precisa do Natal. Precisa respirar outra coisa que não se limite ao ar de sua inexistência. Eu preciso de movimentos no pulmão que não se resumam à necessidade. Anseio por acreditar, um milésimo de segundo pelo menos, que sou mais do que eu posso, do que imagino, do que me cobram os amigos e me desafiam os inimigos. Há no frescor da ilusão com o novo ano, novo eu, novos sonhos, novos caminhos, o que deixei de ser mas que ainda não desisti de ser.
O sentido de renovação que as pessoas enxergam na virada do ano eu coleciono como figurinhas que revisito na memória e que deixo guardadas no coração porque não são os fatos que me movem e me embalam, e sim o cheiro, o gosto e a pressão na pele que eles provocam. Recordo as brincadeiras de infância, mas não quero voltar a brincar. Quero sentir de novo o que sentia. E isso, eu sei, está dentro de mim, não tem tempo que apague.
O encontro com os propósitos da virada é o reencontro imperdível com os acontecimentos e sensações e sentimentos que formaram os nossos valores, o nosso caráter, quem somos, quem defendemos por ser. É o confronto com nossos despropósitos, defeitos, vícios, nossa desvirtudes, se é que isso existe. É o nosso enlaçamento com aquilo que juntamos e desnudamos em nós e na vida e que nos faz mais um pouco o que haveremos de ser ao final.
Não dá pra segurar o Ano Novo pelas mãos. Ele evapora, escorrega entre os dedos, é absorvido pela pele, desaparece para ser incorporado. Mais: para ser ‘incorporado’ pela alma, se me faço entender. Cada um de nós tem o seu em dimensão que suporta. Nem todos aguentamos carregar nossa intangibilidade. É mais fácil levar a carne e o sangue pra lá e pra á do que o espírito e aquilo que não sabemos nominar. O peso de quem somos é insuportável sem a baliza do incorpóreo.
O que temos de material são os instrumentos de nossa voz, feitos, flancos. Produzimos o eco, o som de nossas tramas, o silêncio de nossos tombos. A pele não ampara senão o outro, porque não nos amparamos a tempo. O tempo de fora pra dentro não contém espaço para nossas dores. É sempre hora de bater as mãos e abraçar o próximo parto da existência. O Ano Novo leva-nos de enxurrada. O Ano Novo dá-nos a despedida e a morte que faz o broto viver.
Plantamos a gente na gente e o que emerge nunca é a gente mesmo. Somos uma sucessão de outros que nunca morrem em vão, vida afora.
* Texto publicado pelo Diário de Goiás.