Rádio ligado, quando o narrador grita gol, ele vai looonge dentro da gente.
Ele chacoalha a nossa alma.
Movimento contrário, ele também leva a gente lá pra dentro do gol, faz da gente a bola satisfeita com o chute, o chute totalmente entregue à sedução da bola… faz da gente a cabeçada, o toque sutil ou não da exclamação interior, que vibra como explosão pessoal, e como implosão do mundo.
Gosto da Copa porque gosto das pessoas se desnudando da realidade sufocante e por alguns momentos se abrindo para outra realidade, que é a felicidade geral do passe, do drible, da trave invadida, da corrida desabalada. Eu, inclusive.
Porque não acredito em fuga – da realidade – quando somos paixão, na realidade. Estou mais para acreditar em fuga quando nos dobramos ao cotidiano sombrio que é mais sombrio porque supomos e o suportamos assim.
O narrador que diz, e diz com força ‘gol’, a nosso favor, está nos dizendo que vencemos, que naquele exato momento vencemos e podemos exultar, ainda que ao fim a partida tenha resultado que a imaginação desaprova.
Não falo de ganhar ou perder no placar. Falo de ganhar e perder na vida, e principalmente de comemorar quando temos o que comemorar… na vida. Na vida em jogo como uma Copa o tempo todo.
O ritual da Copa do Mundo é sublime quando os olhos se desarmam.
Alguém conta que comprou TV nova e que tem ingressos para todos, é só aparecer.
Aí outro fala que comprou camisas amarelas em abundância e levará para quem quiser.
E aquele amigo ou parente avisa que chegará mais cedo com as cervejas, o refrigerante, o suco, e que está disposto a fazer o churrasco e que a família toda vai junto, todos juntos na torcida organizada para a alegria geral e irrestrita.
Motivos não faltam para a felicidade quando estamos dispostos a compartilhar nosso coração.
Na crise, parece que só nos dispostos a oferecer ressentimento, raiva, dor, tristeza.
Como se a disposição de ofertar melancolia contemplativa, que se comove com o fim da tarde e a madrugada sertaneja, fosse consumida pela ansiedade dos ataques inadvertidos de fúria contra o outro. O outro, esse inimigo que de repente cultivamos onde e quando deveria estar florescendo a boa e agradável convivência.
Convivemos diferente na Copa. Vivemos diferente quando nos dispomos a ser a bola da vez no jogo em equipe com foco no bem comum: o gol.
E se esse grito de gol vem pelo rádio, nada será como antes no no arrepio ecoado indefinida-mente.
Um amigo um vez me disse que quando ligamos o rádio, ligamos o cérebro. Sim. E nos deixamos à vontade.
O rádio tem essa magia de nos fazer ver a vida de olhos fechados. Viver sentindo a vida falar.
O rádio eleva nossa existência ao patamar da resistência interior diante do mundo lá fora, como se fossemos conquistadores da liberdade de imaginação.
O gol que a Copa traz é um gol íntimo demais para não ser compartilhado, esse gol que o rádio potencializa porque o realiza em nossa essência quando o grito pra fora vibra pra dentro loooongamente.
Até mesmo o gol contra a gente tem sua magia. Até mesmo a derrota tem seu sentido. Não dizem que perder faz parte do jogo? O importante é jogar. Viver indubitavelmente, dividindo isso, e festejando o resto, porque a vida continua, bola pro mato que o jogo é de campeonato.
Gosto principalmente de mim quando começa a Copa.
Me sinto como naquele dia, logo depois de casado, fiquei sabendo que ia ser pai.
Assim, chute certeiro, a notícia e… eu vibrei. E comemorei. Sem qualquer moderação, saí pela rua pulando feito maluco, o corpo leve, voador, o espírito liberto de toda dúvida sobre todo mundo e todo o mundo.
Meu filho. Não havia dúvida alguma ali: a consumação do amor incondicional me invadindo pela área indefesa do sentimento contido da realidade; o amor, simplesmente amor a dar e receber como nunca, sem marcação, sem limitação, sem qualquer possibilidade de desarme por parte dos adversários ou de mim mesmo.
Ninguém pode vencer quem carrega a disposição para o gol em si. O gol destrava o corpo, espalha o sangue, desarma a alma. A não ser que tudo seja exagero meu. Que viver seja um excesso de minha parte.
Mas como não gritar na hora em que o grito teima em sair antes da gente – e que sai, de todo jeito?
Eu não vivo sem gol. Não sou de economizar sentimento. Eu sempre aumento o volume do meu rádio.
Publicado primeiramente em Sagres Online.
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