Ser de outro mundo

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Está cada vez mais estabelecida a prática da discordância como arma, digo, como forma de se deixar claro que quem está falando tem ideia própria, pensamento independente, não é qualquer maria-vai-com-as-outras.

O esforço para se mostrar acima de qualquer suspeita de partidarização, religiosidade ou apologia de uma orientação sexual é tamanho que qualquer dúvida a este respeito é rebatida com sarcasmo ou xingamento puro.

Nada de fina ironia, de argumento em contrário. Isso é para os espíritos fracos, que não têm coragem para dizer na lata o que precisa ser dito. Nada de razoabilidade, equilíbrio. Isso é para sensíveis.

Sim, sensibilidade como defeito. Você entendeu certo. Fazer o quê?

E aí está outra característica atrelada à anterior: é imprescindível que a opinião seja expressada com força, pelo menos dois pontos acima da ênfase. O grito é livre, a voz pausada é tibieza.

Mas eis a questão: o que mesmo pensam os que têm tanta certeza do que estão pensando e… falando?

Tenho um amigo que é contra o aborto e faz disso causa pétrea, que parece ser uma condição acima da causa própria. Vem ao caso que uma parente dele engravidou aos 13 anos e resolveu tirar a criança. Ele achou que a parente fez a coisa certa.

Como assim?

Achou isso porque pensa, por outro lado, e concomitantemente ao outro pensamento, que ninguém é obrigado a ter um filho que não deseja, ainda mais de um mal elemento.

Um filho nessas condições não é bem-vindo e muito menos abençoado, chegou a me dizer, explicando que o livre arbítrio é bíblico. Amém.

Ele é religioso, claro. Muito religioso. Faz caridade no dia-a-dia e está sempre nos grupos de oração de todo mundo.

Outro dia me falou que o Brasil só tem um jeito: eleger um candidato que prometa colocar ordem nas coisas, que leve à prática o conceito de que bandido bom é bandido morto, e que, em nome da família brasileira, se posicione claramente contra essa bagunça que virou dar tanta vez e voz às minorias.

Casamento gay? Igualdade de gênero? Não dá – entende ela (ela ou ele?). Por isso que as coisas estão como estão, completa. E como estão?, pergunto. “Ué, não está vendo?” Sim, estou vendo. Vendo para crer, embora não acreditando em tudo que vejo.

A volta dos militares também é ponto crucial para o Brasil, na visão desse meu amigo. Dele, de amigos dele – e meus – e de outros que, garante, vão se acumulando na defesa da causa. A causa da resistência ao avanço da esquerda, completa.

Entra a corrupção na conversa. Corrupção como prática elementar de esquerdistas, considera. Curioso como a corrupção é sempre prática do outro lado, em qualquer conversa, à direita e à esquerda.

Já dizia um ex-deputado goiano, no tom solene dos que já viram de tudo nesta vida: (abre aspas) “Corrupção é todo bom negócio para o qual não fomos convidados.” (Fecha aspas.)

Ah, o meu amigo também é a favor da pena de morte. Pena de morte? Você poderá dizer: “Uai, mas não é contra o aborto?”

Meu conselho: não fale nada. Esse tipo de nó não leva alguém convicto de seu próprio pensamento, a pensar que, pensando bem, há pensamentos que não resistem ao próprio espelho, quanto mais a pensamentos em contrário.

Diante de tantas certezas alheias, ando meio sem saber o que sou, quem sou e o que pensar da vida. Porque não é que eu defenda o aborto. É que não sou contra cuidar das milhares de jovens que arriscam a vida em abortos clandestinos.

Como também não defendo pena de morte, porque prezo a vida, como bom cristão que sou – que tento ser. E muito menos acho que bandido bom é bandido morto, porque seria desistir do meu próximo, e seria mais ainda desacreditar da leis, regras, da Constituição e das instituições.

Mesmo sabendo que são falhas, sou a favor de que as regras sejam seguidas, jamais que se subverta a ordem para se estabelecer novas regras de exceção como solução para problemas sociais, políticos, humanos. Tenho fé na democracia.

Enfim, eu penso muito, sinto demais, e cada dia tenho menos certeza e menos convicção em um País que condena e prende por convicção e provas incertas.

Eu sei… Devo ser um extraterrestre com tantas falhas e tão profundas complexidades em um mundo que se apresenta simples na cabeça de quem, como meu amigo sabe o que está pensando e o que está falando.

Meu avô Zequinha falava baixo, escutava muito e tinha uma risada que é um alento para quem não sabe o que fazer da vida. Tenho me lembrado muito dele.

Quando ria, ele fechava os olhos, e eu sabia que ele estava se divertindo. Eu fecho os olhos, e a imagem dele diante de mim me diverte. É um alento. Com ele, o diálogo flui sem medo até hoje. Sua memória é meu mapa para o futuro.

Eu e ele temos essa sintonia, esse respeito, temos conjuminância, como ele gostava de dizer. Não temos interpretação. A segunda intenção é sempre nos entender. E a primeira… a primeira, também.

Quando discordamos um do outro, nos entendemos também. Será que somos de outro mundo?

Publicado primeiramente em Sagres Online.

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